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Foto do escritorFilipe Vilhena

João Carlos Brito: “Gosto de acreditar que contribuí para que as pessoas passassem a ter orgulho no seu sotaque”

João Carlos Brito tem 56 anos e é professor-bibliotecário, lexicógrafo e escritor. Nascido no porto, já publicou cerca de 40 obras, sendo “Falar à Moda do Porto”, lançado em 2023, um dos destaques. Para além de participar em vários programas de televisão, como “Praça da Alegria” e “Sociedade Civil”, o autor foi distinguido o ano passado como Personalidade do Ano para a NiT Porto. Nesta entrevista, fala-nos dos seus projetos e pesquisas, sempre com sotaque do Porto.


João Carlos Brito fala do seu trabalho

João Carlos Brito participa regularmente na "Praça da Alegria", na RTP1 | Foto D.R.


Porto Cultural (P.C.) - Como começou o seu gosto pela escrita? Os seus pais apoiaram-no?

João Carlos Brito (J.B.) – Eu já escrevo há muitos anos, tenho seguramente cerca de 40 publicações. O primeiro livro que eu publiquei foi pelo ano de 2001. Sempre gostei de escrever e os meus pais sempre me apoiaram. A minha mãe é professora de português, portanto, senti muito o apoio dela.

P.C. – Por norma, diz-se que a escrita e as artes são áreas “complicadas” para uma carreira profissional. Este estigma existia antigamente? Como foi nessa altura?

J.B. - É verdade, mas essa questão acontece agora, antigamente não existia essa preocupação, contrariamente aos jovens de hoje, que querem um trabalho que lhes dê sustento. Isso acontece porque as coisas mudaram. Na altura, estava ainda no terceiro ano do curso em Aveiro e comecei a dar aulas e aí já existia a noção de emprego para a vida, tanto que eu comecei por ser professor e continuo professor – embora nos últimos 20 anos me tenha dedicado às bibliotecas, sou coordenador de bibliotecas. Continuo a dar formação e gosto de escrever, quero aliar estas duas vertentes.

P.C. - Quando começou o seu interesse pela investigação dos registos informais de linguagem?

J.B. - Tive oportunidade de ir estudar para Aveiro e quando cheguei notei que existiam muitas diferenças linguísticas. Sempre me interessei pela parte da linguística, nomeadamente, pelo léxico. Gosto de entender os fenómenos fonéticos, mas sempre tive mais preocupação (e acabo por perceber muito mais) de lexicografia. Comecei a fazer trabalhos relacionados com a linguística e investigação sobre as gírias estudantis e sobre as formas de falar nas diferentes regiões. O contacto com os meus colegas acabou por me despertar ainda mais esse interesse. Eu vivia numa residência estudantil e éramos cerca de 12 pessoas, provenientes de vários locais. Comecei a notar que usávamos palavras diferentes para os mesmos objetos e a partir daí fui investigando e colecionando. Para além de fazer esta espécie de arqueologia das palavras, interessava-me saber a origem. Queria saber porque chamamos a determinado objeto uma coisa. É claro que tendo algumas noções de etimologia, como latim, grego, espanhol, alemão, italiano e francês, permite-me perceber o percurso que a palavra fez até aos dias de hoje, com um determinado significado.



O autor esteve no ano de 2023 no programa "Praça da Alegria" para falar do seu livro "À Moda do Porto" | Vídeo D.R.

P.C. - Quais foram as palavras que lhe despertaram mais curiosidade nessa altura?

J.B. - Em termos de palavras que me despertaram mais curiosidade, lembro-me de duas concretamente: apanhador (objeto com o qual recolhemos o lixo; pá do lixo) e picheleiro (canalizador). Há uns anos fui fazer uma apresentação de um livro a uma escola num concelho de Aveiro e lancei a questão aos jovens acerca de quem sabia o que era um picheleiro. Só metade é que sabia o que era. Apesar das distâncias se terem encurtado bastante, continuam a existir variantes dialetais muito especificas em determinadas regiões. Comecei a estudar Leite de Vasconcelos e outros indivíduos que tentaram uma taxonomia das variantes dialetais, ou seja, como é que as variantes portuguesas falavam. Nessa altura percebi porque é que ninguém se arrisca a avançar muito com definições exatas, porque é impossível ter a noção exata onde começa um “falar” e onde se inicia outro. Quando me refiro a “falar”, estou a abordar não só a questão do sotaque e da pronúncia, mas, principalmente, ao conjunto de termos, palavras e expressões que são recorrentemente utilizadas por um grupo de falantes.

P.C. – Portugal é um país pequeno. Contudo, temos muitas diferenças nas palavras e expressões, principalmente entre o Norte e o Sul. O que pode explicar este fenómeno?

J.B. – É verdade. Temos de perceber a explicação histórica que nos permite dialogar uns com os outros – o início. A região que é hoje considerada o Norte de Portugal, e a Galiza, falavam uma língua que não tinha nome e que haveria de ser o português. No século VII d.C. já falámos algo que deveria ser o galaico português e, mais tarde, o português. Contudo, as pessoas necessitavam de comunicar umas com as outras e iam arranjando termos e construindo uma estrutura linguística. À medida que as pessoas vão falando e percebendo que têm necessidade de determinadas palavras para determinados objetos e que conseguem com muito menos palavras dizer mais coisas, vão construindo a sua própria gramática. As razões históricas explicam que determinados vocábulos se tenham sediado, sedimentado e fossilizado em algumas regiões e outras não. Depois, há muitas influências. Ressalvo que não quero incitar que existem variantes “melhores” ou “piores” do que outras. Não há uma pronúncia correta.

 

P.C. – Para além das razões que mencionou, somos influenciados pelo que está à nossa volta. Portanto, localidades que estão “coladas” a Espanha, têm influências desse país?

J.B. - É evidente que temos relações de maior proximidade com os vizinhos. Um habitante da Raia, de Melgaço, o seu falar é mais próximo do lado espanhol, do que, por exemplo, do Porto. E muito mais próximo do espanhol do que do reportório linguístico de um alentejano. No Sul do país há influências específicas. Há mais palavras com base no árabe a Sul do que a Norte e isto tem uma razão histórica evidente, visto que contactaram durante anos. Os árabes deixaram-nos um legado impressionante, não só nas ciências, como nos artefactos, mas também na parte linguística. Esta é uma razão fundamental.



João Carlos Brito em algumas das suas participações na TVI e RTP1 | Fotos D.R.

P.C. – Podemos relacionar a influencia de momentos e pessoas à transformação de uma língua?

J.B. – Sim, há a genialidade e a oportunidade. Muitas das vezes, nós não criamos palavras, criamos um sentido para essa palavra. Sei apontar alguns motivos que determinaram algumas palavras e expressões. Isso tem a ver com circunstâncias do momento, pessoas e acontecimentos que num determinado momento foram impactantes e criaram uma espécie de “bomba linguística” e criaram palavras e expressões a partir daí. Por exemplo, há muito mais palavras que chegaram com os ingleses a Norte do que a Sul, porque aí eles tiveram muito mais influencia. Outra questão muito importante é o capital de autoridade do grupo dominante, que se impõe pelo poder, força e dinheiro (neste caso, podemos recorrer aos influenciadores), que têm um impacto e tudo o que dizem é repetido e isto é transversal. Estamos a falar das diferenças com base na história, geografia, estrato social, etnia e na faixa etária do falando. Tudo isto tem influência naquilo que dizemos. Queremos ser aceites socialmente e, por isso, vamos ao encontro das normas de grupo – o que se diz faz parte. Para além disso, queremos destacar-nos nesse mesmo grupo.


"Tudo o que potencie a cultura dos portugueses é positivo" - João Carlos Brito

P.C. – Na comunicação social, talvez mais em programas de entretenimento, é cada vez mais recorrente o uso de algumas palavras que outrora eram consideradas calão. Também o calão tende a ganhar novo significado?

J.B. - Daqui a 100 anos, provavelmente, estaremos a considerar calão/gíria palavras completamente diferentes das que hoje consideramos. Isto porque, precisamente, há palavras de calão que com uso corrente deixam de o ser. Por exemplo, “porra”, já foi um calão, porém, socialmente, foi uma palavra que as pessoas já ganharam alguma tolerância. Podemos considerar que isto acontece porque as regras e os padrões vão mudando e as pessoas que geram influência na sociedade a utilizam e vão desmistificando a sua “agressividade”. Esta questão está em constante mudança, apesar de demorar muito tempo.

P.C. – Autor de mais de 40 obras, podemos abordar, de modo geral, dos seus trabalhos?

J.B. – Tenho cerca de 20 publicações que estão relacionadas com a linguagem marginal dos vários pontos do país. Também sou autor de outras publicações, como romances, biografias, contos e novelas. Falando das minhas obras relacionadas com os “falares”, acho que é importante dizer que um dos meus objetivos é conservar determinadas palavras e expressão que os nossos avôs utilizavam regularmente. Quero recordar e não quero deixar que estas palavras se percam completamente. Gosto de acreditar que contribuí para que as pessoas, a partir de determinada altura, passassem a ter orgulho no seu registo e no seu sotaque. Penso que tenho alguma coisa a ver com isso, nomeadamente, na região Norte e no Porto, especificamente, se for a qualquer sítio na Baixa, vê numa Hamburgueria os pratos com nomes de expressões típicas daqui. Há alguns anos, as pessoas envergonhavam-se do seu sotaque. Sou professor e penso que se quero transmitir algumas ideias, a melhor forma de o fazer é utilizando boa disposição. Procuro que os meus livros sejam divertidos e que as pessoas esbocem um sorriso ao ler aquilo que eu vou escrevendo. Já vendi mais de 300 mil livros, um valor muito acima da média em Portugal.



O autor esteve no Porto Canal | Foto D.R.

P.C. - Considera que as pessoas estão mais abertas a assumir o seu sotaque? Isto acontece também por causa das redes sociais, que “aceleraram” o processo de globalização?

J.B. - Acredito que sim. Penso que já ultrapassámos em parte o complexo que o Vital Moreira (político e professor da faculdade de Coimbra) chamava o “Lisbotez”, que é a forma idiota que as pessoas que não tendo nascido nem tendo sido criadas em Lisboa procuravam imitar. Contudo, continua a existir preconceito linguístico: Há muita gente que reage instintivamente a um sotaque que não é o seu. Obviamente podemos sentir afinidade com quem tem o mesmo sotaque que nós, faz parte das relações humanas. Quanto mais diferente da nossa é a pronúncia, mais rapidamente reagimos. Existem pessoas que me dizem que, se querem determinado emprego, existe um critério preconceituoso relativamente a quem fala “a norma padrão”, algo que não existe. Pretendo desenvolver uma campanha sobre o preconceito linguístico e não entendo como é que não se fala desse assunto.

P.C. - Qual é a expressão ou palavra preferida do Porto?

J.B. - Gosto de palavras com história. Para este último livro, selecionei cerca de 1000 palavras que considero emblemáticas, recorrentes de falantes do Porto e que têm uma história para contar. Gosto de desconstruir as palavras e contá-las com rigor e, por vezes, descubro que nem estava assim tão certo. O melhor que temos de fazer é reconhecer que não é bem assim. Um exemplo concreto disso é a expressão “andar à ‘guna’” [andar sem pagar na parte traseira de um transporte público]. Muitos anos pensei que ‘goon’ [palavra inglesa que significa ‘rufia’] vinha do ‘guna’ [personagem que usa boné de lado e as calças descaídas]. Neste momento considero que está relacionado com ‘anguna’ [meio de transporte no Timor]. Tenho quase a certeza que é daí essa expressão.

P.C. - Foi reconhecido várias vezes, nomeadamente em 2023, pela NiT, enquanto Personalidade do Ano. O que esta e outras distinções representam para o seu trabalho?

J.B. - É bom, porque é uma causa e um trabalho que interessa. Não podemos fazer nada sem acreditarmos no que estamos a fazer. Quanto mais reconhecimento esta causa tiver, é evidente que mais impacto terá. Obviamente também gosto de ter sucesso, mas acima de tudo, o reconhecimento e as distinções são boas porque potenciam o trabalho. Um livro, por ter um prémio, não passa a ser melhor, mas o prémio “chama” mais pessoas. Tudo o que potencie a cultura dos portugueses é positivo. Recebo imensas mensagens de pessoas, acho que as pessoas se identificam muito.


João Carlos Brito tem cerca de 40 publicações. "Falar à Moda do Porto" é o oitavo livro sobre os falares marginais da cidade Invicta | Fotos D.R.


P.C. – Considera que fazem falta mais pessoas que estudem a língua portuguesa, com todas as suas particularidades e expressões?

J.B. – Para começar posso dizer que vou publicar um livro este ano na continuidade do Porto e do Norte, portanto, no meu caso continuarei a fazer o que posso. Eu questiono o que posso fazer pela minha região. Além disso, tenho a coleção “Heróis à Moda de…” (2010-14) e eu fiz de várias regiões, como do Algarve e Alentejo, por exemplo. Eu coordenei essa coleção onde participaram cerca de 1300 pessoas de todo o país. Cada um na sua região ia dando o seu contributo, sempre com um toque humorístico. No Norte, nos Açores e no Alentejo, por exemplo, há muita gente interessada em conservar estas palavras e expressões. O que eu faço de diferente, é procurar as histórias das palavras na etimologia, na etnografia e na sociolinguística e perceber como estas se formam, se constroem e se tornam icónicas. Talvez não exista mais ninguém a fazer isso.



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