Luís Monteiro, natural de Vila Nova de Gaia, é investigador no CITCEM - Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória. Licenciado em arqueologia, fez mestrado em Museologia e é doutor em Estudos do Património, no ramo de Museologia. Entre 2015 e 2021, foi deputado no Parlamento português. Durante o seu percurso profissional, tem-se dedicado à Museologia Crítica e aos Estudos da Memória. A sua tese, “O museu em tempo de crises: O papel dos museus na resposta à crise dos refugiados na União Europeia do século XXI”, encontra-se publicada. Nesta entrevista, o investigador de 30 anos fala-nos do papel dos museus na sociedade e dos museus da cidade do Porto.
A tese de Luís Monteiro está publicada | Foto Porto Cultural
Porto Cultural (P.C.) - Todos nós temos uma perceção acerca da definição de um museu. Contudo, o que pressupõe realmente este espaço?
Luís Monteiro (L.M.) - O debate sobre a missão e o conceito do museu foi sendo alterado, principalmente, desde os anos 60 até hoje. O museu deixou de ser aquilo que era no século XIX, uma espécie de “gabinete de curiosidades” e passou a assumir, principalmente nos anos 60 e 70, uma missão mais social. A coleção deixou de ser o mais importante da existência do museu, para passar a servir como um instrumento de educação social e um instrumento de cidadania de valores democráticos. As utilizações das coleções começaram a ter um papel muito mais pedagógico e de relação com as comunidades das quais elas pertencem. Em 1972, há uma grande conferência em Santiago do Chile e, nessa mesa redonda, que juntou antropólogos, sociólogos, museólogos e filósofos, foi criada uma corrente de pensamento chamada Nova Museologia. Essa corrente falava do pendor social do museu, coisa que até então não era muito falada. Um museu tem de ser, obrigatoriamente, pensado, não só para a comunidade onde está, mas por essa comunidade. Depois do último encontro de Praga do ICOM – Conselho Internacional de Museus, e seguindo o ponto de vista internacional e da Unesco, há cada vez mais a visão de assumir o museu como um instrumento de transformação social.
P.C. – Qual a importância dos museus para a construção da memória coletiva?
L.M. É importante referir, primeiramente, que há muitos tipos de museus. Os museus de memória, constroem uma memória coletiva em torno de uma catástrofe natural, de uma perseguição étnica, política e social ou constituem um espaço de reflexão sobre o passado mais recente. Sem dúvida que têm um papel importante porque acabam por colocar em causa uma visão muito positivista e conservadora de uma construção e de uma narrativa em torno do Estado-nação, com a única memória coletiva possível. Dentro do Estado-nação há muitas coisas diferentes, como classes sociais, grupos étnicos, migrações que alteram as dinâmicas sociais, grupos e minorias sociais que, muitas das vezes, são excluídos dessas memórias oficiais. Os museus têm sempre um papel de colocar em causa essas memórias coletivas e de construir outras memórias, como as sub-alternas.
P.C. – Foi deputado entre 2015 e 2021. Esse cargo alterou a sua visão acerca da cultura e de um museu?
L.M. – Sim, claro. Quando fui deputado estava a começar a tese de mestrado, mas não deixei de ter um papel crítico, como aquele que eu fazia na Faculdade de Letras, enquanto estudante. Como tive na comissão de cultura, fui acompanhando alguns dossiers relacionados com as políticas e fui alterando a minha visão acerca da cultura e de um museu. Eu tive um dos processos mais interessantes, que fiz no Parlamento, relacionado com a alteração da lei da autonomia dos museus e movimentos nacionais. E foi muito bom perceber esta dinâmica entre políticas do Estado central e a capacidade de autonomia e financiamento de cada um destes equipamentos. Tanto no meu papel como investigador, como no meu papel enquanto deputado, fui cruzando algumas coisas que fui aprendendo em cada um dos deles.
P.C. – A sua tese de mestrado, intitulada “O museu em tempo de crises: O papel dos museus na resposta à crise dos refugiados na União Europeia do século XXI”, foi publicada. O que retrata esta investigação?
L.M. – A tese foi publicada por uma editora em Coimbra e começou a ser feita quando estávamos a viver uma grande crise humanitária, com a chegada de muitos refugiados de guerra e climáticos no mar Mediterrâneo, em 2015. A Europa, que se apresenta como um garante da civilização e dos grandes valores da democracia e da solidariedade, virou uma Europa “fortaleza”. Vimos Estados-nações europeus a garantir que esses barcos de refugiados não conseguiam atracar e, portanto, morreram muitas pessoas sem ajuda. Na tese tento perceber de que forma é que alguns dos museus na União Europeia, davam uma resposta contrária àquilo que era uma vontade política maioritária, de fazer de conta que essas pessoas não existiam. Consegui alguns exemplos de projetos sociais em museus, como o The Open Museum, em Glasgow, onde refugiados e imigrantes construíram uma exposição através dos pertences que traziam consigo. Os escoceses eram convidados a conhecer a vida e a biografia daquelas pessoas, através da coleção. Destaco o projeto Multaka, em alguns museus de arte de Berlim, que tinham uma coleção muito grande de arte que foi roubada a esses territórios. As visitas guiadas eram realizadas por refugiados e imigrantes desses locais. Havia, por último, um projeto em Milão, que estava relacionado com alguns Centros de Arte Contemporânea que davam aulas aos recém-refugiados de língua italiana, indiana, árabe, entre outras. Era um espaço de primeiro contacto com a língua italiana e com a cidade de Milão.
P.C. – O que configura um museu em tempo de crise? Qual a sua ligação com os refugiados?
L.M. – Um museu em tempo de crise pressupõe, inicialmente, a ideia de que o museu pode ter um papel de “contracorrente”, numa altura em que se perdem um conjunto de valores democráticos e de solidariedade. A resposta política que a União Europeia encontrou para a crise dos refugiados, que foi desmarcar-se das pessoas, foi contrariada por esses museus, que assumiram estar disponíveis para receber pessoas e trabalhar com elas. Em termos de ligação com os refugiados, podemos dizer que em vez de eles serem vistos como algo “estranho” na Europa, é assumir que a própria Europa tem uma responsabilidade muito grande sobre a sua vinda para cá. A crise de refugiados não acontece “do nada”, mas porque esses países continuam a ser explorados em grande medida pela Europa, pelos Estados Unidos e outras grandes potências.
“O público só se cria se houver investimento na cultura” - Luís Monteiro
P.C. - Considera que, na região do Porto, os museus são valorizados? Existe público para estes espaços?
L.M. - É sempre um debate sobre o teatro e o cinema, porque há uma conversa muito conservadora que assume que não há público e que não vale a pena investir na cultura. O público só se cria se houver investimento na cultura. Não vale a pena achar que o público vai ao cinema se há duas obras financiadas por ano - os públicos constroem-se. Quando se criou gratuitidade ao domingo nos museus, estes passaram a ter mais público, porque há uma vontade de participar na vida cultural. Há público para uma programação cultural mais viva, coisa que não só a região do Porto peca, como o resto do país. Continuamos a ter menos de 1% do PIB investido em cultura. Os orçamentos do Ministério da Cultura estão abaixo de grande parte das Câmaras Municipais do país. Portanto, há um problema sim, mas é o do financiamento público das artes e da cultura e não propriamente um problema de falta de públicos. Podemos assumir que a valorização poderia vir do lado das autarquias, mas não só. Tem de haver políticas nacionais que alavanquem alguns desses investimentos e os licenciem.
P.C. - Portugal tem museus centralizados ou existe uma boa divisão destes espaços culturais pelo país, nomeadamente nas zonas mais afastadas das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto?
L.M. - Nós temos um problema de desertificação do interior do país. Portanto, isso coloca sempre dificuldades na gestão de investimento público nesses sítios, porque há pouca gente nesses territórios e não se investe no conjunto de serviços culturais. Não havendo esse investimento, as pessoas saem cada vez mais. A Direção Geral do Património Cultural tem na sua tutela museus e monumentos nacionais, a esmagadora maioria na zona de Lisboa. Temos o Museu Nacional Soares Reis, no Porto, temos o Machado Castro, em Guimarães, e temos outros equipamentos descentralizados. Contudo, continuamos a ter uma concentração brutal de investimento público na área do património dos museus, muito em Lisboa. Isto acontece por razões históricas, mas já temos uma democracia madura que poderia ter descentralizado mais esses espaços. Depois há um papel importante das autarquias e, sem dúvida, a grande revolução no plano museológico e museográfico em Portugal foi o papel das Câmaras Municipais após o 25 de Abril. Muitos dos museus em Portugal são municipais ou dependem de apoio municipal, como fundações público-privadas, associações que criaram o museu, espaços que têm ajuda de fundos comunitários ou algumas ajudas estatais. A realidade da nossa rede de museus passa por um papel autárquico bastante ativo. Nos próximos anos vai continuar a ser assim, olhando para aqueles que são os orçamentos da cultura.
P.C. - Que medidas podem ser aplicadas para uma maior divulgação da cultura e para atrair visitantes para os museus?
L.M. - Há alguns exemplos interessantes a nível europeu e até internacional. Para o nível de vida médio em Portugal, o acesso à cultura é muito caro. E não se coloca só no nível dos museus ou do teatro, temos livraria cara. O cinema independente tem muito pouco espaço de fruição cultural. No Porto, é verdade que nos últimos anos houve um ou dois novos polos, o Cinema Trindade e agora o Cinema Batalha. Ainda assim, tivemos 30 anos praticamente sem cinema independente no Porto. Agora há uma tentativa de recuperar alguma coisa disso. O teatro tem níveis históricos baixíssimos de investimento. Na área dos museus há algum investimento porque os museus são “apetitosos” do ponto de vista turístico. Pelo menos alguns deles. Portanto, são incluídos em roteiros turísticos. Principalmente nas cidades de Lisboa e do Porto, mas continuam a depender em grande medida do investimento autárquico e não de uma política nacional mais sólida. Há países onde o acesso a museus públicos é gratuito em qualquer dia da semana para uma percentagem grande da população. Esse tipo de políticas confere uma dinâmica totalmente diferente e os museus não ficam reféns dessa falta da entrada de dinheiro pela venda de bilhetes. Antes pelo contrário, porque quem vai gratuitamente, poderá levar um amigo que vai pagar um bilhete. E se forem os dois a ter de pagar um bilhete pensam duas vezes se querem ir.
Luís Monteiro fala da necessidade de "ativismo" relativamente ao património | Foto: Porto Cultural
P.C. - O Porto tem vários museus. Quais são os principais? E esses museus são reconhecidos por parte da população?
L.M. - Fui tentando acompanhar o debate sobre a criação do Museu da Cidade, que é uma espécie de rede de Museus Municipais. Tirando o Museu Soares dos Reis, que é um museu nacional, e Serralves, que é um museu público ou privado, todos os outros são museus municipais e a ideia da Câmara Municipal agora é criar o chamado Museu da Cidade, em que os museus deixam de ser independentes, mas têm uma espécie de programação em rede. Esta medida engloba o Museu da Água, Antiga Casa de Teito, Museu Romântico e algumas galerias. Há uma tentativa de criar uma dinâmica de rede e isso até poderá igualar mais os museus, porque o que acontece é que existe um ou outro museu com mais visitas, como Serralves, mas depois há museus que estão completamente esquecidos, como alguns da Universidade do Porto.
P.C. - Como vê o futuro dos museus em Portugal?
L.M. – Vejo o futuro dos museus com alguma apreensão. Em 2018, no Parlamento, tive oportunidade de participar num grande encontro com os diretores de todos os museus nacionais e dos monumentos. Abordámos as dificuldades de conseguir receitas, por vezes, para fazer obras como trocar lâmpadas nos átrios dos monumentos. Há um brutal desinvestimento público. Desde 2010, durante a crise financeira, o investimento público caiu a pico. O material está em mau estado, parte do investimento público em obras no edificado que foi feito até então começa a ficar obsoleto, por isso, é necessário novos programas de recuperação de obras de arte e do próprio edifício. As câmaras continuam a fazer um papel de “contracorrente”, vão mantendo uma dinâmica museológica em Portugal. Precisamos de ativismo pelo património que em Portugal não existe muito, mas já existe noutros países a lógica de defender a cultura como um instrumento democrático. Ainda vemos a cultura como aquela despesa que o Estado, se puder cortar, é a primeira coisa que faz.
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